ELÃ, Escola Livre de Artes



Luiza Mello
— Automatica
Marisa S. Mello
— Automatica



Vista da exposição
Esquerda Título, Autor.

A Elã se insere no contexto do Galpão Bela Maré como uma conquista, uma vez que sempre houve a intenção, desde sua fundação em 2011, de constituir um eixo de formação voltado para os moradores das favelas e regiões periféricas do Rio de Janeiro. O programa educativo já realiza um importante trabalho junto às escolas e aos frequentadores do Bela. A Escola foi um passo além, que seguiu as formulações e ações desenvolvidas pela equipe, sempre atenta tanto às diferentes poéticas, localizações na cidade, quanto a corpos, cores e desejos.

O primeiro ano é sempre desafiador e momento de experimentar, errar, entender como constituir um espaço de formação.

Os objetivos iniciais da Elã podem ser lidos também como princípios, e articulam questões específicas à primeira turma a concepções mais gerais. Realizar um ciclo formativo em artes, com a parceria entre o Galpão Bela Maré/Observatório de Favelas, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage e a produtora Automatica, a partir da Escola Livre de Artes relaciona-se diretamente com o objetivo de contemplar um grupo que seja diverso no que se refere tanto à localização na cidade, quanto às poéticas, trajetórias, orientações sexuais, gêneros etc.

O nome que a gente dá às coisas se alinha com o objetivo de criar novos nomes para as coisas; e ao mesmo tempo aponta para uma concepção ampliada e plural de arte, a desierarquização de conceitos e metodologias.

A partir dos encontros e do trabalho em grupo, provocamos e promovemos o deslocamento das pessoas na cidade. Ao trabalharmos enquanto coletividade em busca de ferramentas teóricas e técnicas para a construção de projetos artísticos, colaboramos para o processo de formação de uma rede entre xs artistas.

Ao realizar uma mostra de arte com trabalhos desenvolvidos pelxs artistas durante o processo, procuramos dar visibilidade aos processos, trajetórias e trabalhos produzidos por elxs.

Promover o encontro de experiências estéticas como parte da vida social que acontece nos diferentes territórios da cidade, através de um projeto gratuito e aberto ao público, reforça a presença do Galpão Bela Maré na cidade, e o território da Maré como lugar de referência no debate e articulação das práticas artísticas com as pautas políticas contemporâneas.

Gostaríamos aqui de pensar a Elã sob três pontos de vista: a formação em si, xs artistas e a exposição, não como um resultado, mas como parte de um processo, que continua repercutindo.

“O nome que a gente dá as coisas” foi o título da primeira edição da Escola, com 25 artistas definidxs a partir de uma chamada pública que obteve mais de 150 inscrições e se desdobrou em cinco eixos de conversas: deslocamentos, conceitos, materialidades, corpos e agenciamentos. Cada eixo teve um convidado, que realizou dois encontros com a turma.

Sinteticamente, o sentido desse título está nos diferentes significados e implicações dos conceitos acima nas vidas e poéticas das pessoas aqui implicadas, como eles são usados e como podem ser ressignificados ou subvertidos. A história dos conceitos e o pensamento crítico sobre eles contribuem para revelar os embates do campo artístico-cultural e sua relação com os outros campos, como o político e o econômico. De um modo geral, apontou-se para o esgarçamento e a ampliação dos conceitos.

A formação – eixo fundamental de um espaço de arte contemporânea – considera que há algo a ser acrescentado no encontro entre o convidado a iniciar a conversa e xs artistas. Mais do que um relacionamento de dependência, o que emerge é um relacionamento de respeito e compreensão mútua, em que os participantes veem os educadores e artistas convidadxs como catalisadorxs e colaboradorxs junto ao processo criativo, com diversas possibilidades de desdobramentos e articulações.

A Automatica foi responsável por conversar sobre o eixo agenciamentos. No dicionário, agenciamento significa, por um lado, trabalhar com dedicação para alcançar um objetivo; e, por outro, atuar como intermediário ou agente de algo. Procuramos, então, identificar os agenciamentos que atravessam as trajetórias dxs artistas presentes; visualizamos portfólios e revisamos crítica e coletivamente o material de cada um dxs presentes.

No segundo encontro, a partir de nossa experiência com a mostra Travessias, apresentamos o processo de elaboração, planejamento, produção e montagem de uma exposição coletiva de artes visuais contemporâneas; e pensamos nas principais questões da exposição.

Além dos encontros regulares, foram realizadas conversas sobre temas específicos, abertas a quem quisesse participar. Através da Escola, procuramos aprofundar questões teóricas, investigar coletivamente aspectos relacionados a arte, imagem, representação e estudos culturais, aliados com as pautas políticas, sociais e ambientais de nosso tempo. Procuramos obras e proposições de viés experimental, convidamos artistas para dialogar sobre seus processos, articulando e construindo sentidos renovados para os objetos e situações aos quais elxs mesmo se dedicam.

Concomitante ao processo formativo, cada artista formulou proposições que foram exibidas em uma mostra coletiva realizada em 2019, que reuniu trabalhos alinhados com a problemática do nome que a gente dá às coisas. Configurou-se como um conjunto articulado de práticas discursivas, formas distintas de manifestação da arte em situações de disputa e conflito na contemporaneidade, desafiando os modos já estabelecidos de entendimento do mundo.

A partir da proposição do crítico Moacir dos Anjos, gostaríamos de enfatizar que as diferenças entre a produção de um território e a de outros não se devem a questões ontológicas. Não cabe, num ambiente cada vez mais interconectado, a tentativa de naturalizar criações artísticas. Na produção contemporânea, o local se impõe por meio dos modos singulares com que xs artistas articulam os elementos que trazem as marcas da história e da formação de um lugar e os elementos que expõem, criticamente, a natureza contingente daquele lugar. O que confere distinção à produção de um lugar em relação a outro é o ponto de vista de onde são feitas essas articulações, é o contexto (histórico, político, cultural) a partir do qual essas aproximações são tecidas. Existem formas específicas dessa política da arte se expressar, que são resultado do processo de cada artista. Na contemporaneidade, convivem movimentos contrários, mas articulados, de homogeneização e de afirmação de diferenças. Resta-nos atuar praticamente e servindo a uma arte menor, definida nos termos do autor pelo conjunto de movimentos contra-hegemônicos que constantemente reiteram a ideia de que o local não é lugar somente de subjugação, mas de confronto e insubordinação.

Longe de querer construir posições definitivas em torno do debate, apresentamos algumas das questões que envolvem a Elã. A atividade de formação deve buscar relacionar projetos éticos e estéticos incorporando níveis complexos, múltiplos e entrelaçados de cuidado e cumplicidade com artistas, públicos, pesquisadores e contextos, com especial atenção às relações entre arte e sociedade, arte e saúde, arte e vida. Nas relações entre arte e educação, a partir das reflexões do Instituto Mesa, gostaríamos de destacar o conceito de “admirar”, de Paulo Freire. A leitura e o aprendizado do mundo se dão a partir de “momentos contínuos”. No âmbito da arte contemporânea, isso implica partir do estranhamento para a identificação e construção de significados ligados à experiência das pessoas. A arte educa por meios singulares, abrindo fissuras no entendimento convencional do mundo. Por meio do desaprendizado de algo que até então estava estabelecido, faz-se a roda girar, e o aprendizado de uma partilha mais alargada do sensível se faz presente.

Gostaríamos também de destacar os obstáculos e impasses propositivos que enfrentam xs artistas contemporânexs em relação aos limites orçamentários, as condições de existência, acesso a materiais, espaço para produzir etc.; afinal, não se pode achar que resolvemos qualquer coisa.

Por fim, não poderíamos deixar de agradecer ao Observatório de Favelas e à equipe do Galpão Bela Maré pela longa e sólida parceria; ao Parque Lage e a presença da Gleyce Heitor; aos patrocinadores e apoiadores; e aos participantes, pela oportunidade de estar em contato com tantas pessoas e poéticas extraordinárias, entre artistas e profissionais envolvidxs com essa experimentação coletiva. Vida longa aos encontros e ao fazer junto que a Elã proporciona! A continuidade da Escola, tanto com novas turmas, quanto fomentando a rede criada de artistas e equipe, desde a primeira edição, é fundamental para o amadurecimento do projeto e para a reflexão crítica constante sobre o mesmo. Os desafios são muitos, mas achamos que, como primeira edição, os ganhos também foram surpreendentes.
Mark