Dois tempos e um problema


Ulisses Carrilho
— Curador de Ensino e Programas Públicos da Escola de Artes Visuais do Parque Lage



Guilhermina Augusti
Anúncio futuro, 2019
Pintura sobre tecido

A Escola de Artes Visuais do Parque Lage foi fundada em 1975, pelo artista Rubens Gerchman, durante o regime militar brasileiro. Na segunda metade da década de 1970, reuniram-se nesse ambiente transdisciplinar intelectuais como Hélio Eichbauer, Lina Bo Bardi, Mario Pedrosa, Alair Gomes, Celeida Tostes, Dionísio del Santo, Lélia Gonzalez, Paulo Herkenhoff, Lygia Pape, entre outros. Coube à professora Lélia Gonzalez gestar e realizar ali o primeiro curso institucional que abordava a Cultura Negra no Brasil, fato repetidamente excluído da “biografia” da escola. As oficinas oferecidas ao público definiram a escola como um dos ambientes mais estimulantes da cidade, marcado sobretudo pela liberdade de expressão que desafiava o academicismo e a censura imposta pelo regime militar. Firmava-se um “Espaço de Emergência, Espaço de Resistência”.

Este momento de resistência na Zona Sul do Rio de Janeiro era concomitante a um período de grandes transformações na estrutura urbana, como a urbanização da população, inchaço das periferias, redesenho de vias em benefício dos automóveis, novos fluxos de informação, criação e abandono de áreas centrais – tais fatos marcam profundamente o apartheid social que vive até hoje a cidade do Rio de Janeiro. A Avenida Brasil e as horas de locomoção no transporte público são, talvez, sua marca mais cotidiana, uma artéria que corta a cidade:

“Ver e pensar a diversidade de invenções nas construções populares verticais, horizontais e em espaços alagados me fascinam. As questões menos elaboradas e menos técnicas serão sempre as mais ricas; é o broto, o início do processo criativo, que não necessariamente nos leva à perfeição das formas ou a um outro fim. O fim não me interessa, mas o caminho percorrido, a criação em suas diferentes formas e manifestações, o invisível que nos transforma. A Favela da Maré, para mim, é o fazer espontâneo de duração improvável. O sentido espacial desse aglomerado habitacional é absolutamente inusitado e precisa ser explorado. Levei muitos alunos da arquitetura da USU (Faculdade Santa Úrsula), à Favela da Maré, tendo consciência de estar desbravando um terreno virgem. Levar esses jovens a um lugar que jamais pisariam de outra forma era também um desafio”.

Lygia Pape
— Favela da Maré ou o Milagre das Palafitas, 1972

Lygia Pape, futura professora da EAV Parque Lage, então no curso de Arquitetura na Universidade Santa Úrsula, relatou suas aulas de “Plástica” na universidade como visitas ao centro da cidade e, sobretudo, à Favela da Maré, onde apontava aos alunos a riqueza das “invenções do espaço arquitetônico”. Tal ponto de vista, que reafirma de maneira segura a geografia que assinala um “eu” e um “outro”, precisa ser urgentemente atualizado. Um “eu” criador, inventivo, solidário, generoso e um “outro” rudimentar, primitivo ou ingênuo, também inventivo. Muito embora os experimentos e incursões de artistas como Hélio Oiticica e Lygia Pape assinalem, num âmbito internacional, um desejo pelo rudimentar, por expressões que estavam à margem ou excluídas do âmbito cultural, cerca de quatro décadas depois tais estratégias precisam ser revisitadas, atualizadas.

O período de criação da EAV Parque Lage na história cultural do país é marcado por corpos desaparecidos, exilados, torturados e censurados. Em 2020, 56 anos após o golpe civil-militar, repudiamos todo e qualquer posicionamento a favor das práticas de tortura, dos crimes contra os direitos humanos ou contra o livre direito de criação, expressão e manifestação. Os desafios se atualizam: Quem mandou matar Marielle Franco? Mulher preta, lésbica e cria da Maré, o assassinato de Marielle Franco, um crime político, é o mais pesado fardo que a falsa democracia brasileira carrega em suas costas. Não caberia à instituição, apesar de sua história de resistência, não aprender com a Escola que colaborava, em parceria institucional. É urgente imaginar que cada espaço, em suas singularidades, guarda a informação, a sabedoria, o conhecimento, as imagens, as narrativas, os discursos da sua própria gente. Como imaginar uma Escola que objetiva interagir com uma comunidade sem ter a sensibilidade de aprender com ela?

A Elã — Escola Livre de Artes carrega consigo, com seus organizadores, com seus públicos, com seus colaboradores, com os visitantes de suas exposições e, sobretudo, na poética dos artistas que reúne a possibilidade de deformar o sistema da arte tal qual ele é. Investir na formação de artistas com um léxico sensível às suas vidas e demandas é sobretudo compreender que o papel da Escola não inclui apenas o verbo “ensinar”. É preciso que escolas aprendam com a insubordinação de seus alunos. Quiçá assim, num exercício radical de ruptura com o sistema de privilégios, consigamos aprender com a desobediência de todas as zonas da cidade, num “fazer espontâneo de duração improvável”. Que todos os territórios, indiscriminadamente, possam dar seus nomes às coisas. Não somos “inusitados”, estamos cansados de ser “explorados”.
Mark